quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Crônica: O Anestesista - Autor: Rubem Alves.

    


    A anestesia foi a primeira de todas as especialidades médicas. São as Escrituras Sagradas que o afirmam. Pois Deus, para retirar de Adão a costela necessária para a criação de Eva, fez cair sobre o homem um sono profundo. Isso, fazer dormir, é ato de anestesista. Foi só então, depois de exercer as funções de anestesista, que Deus se transformou em cirurgião.
    Deus não queria que o homem sentisse dor. Uma cirurgia feita sem anestesia é uma experiência de uma brutalidade indescritível. Muitos prefeririam morrer a sofrer os horrores da dor de uma cirurgia sem anestesia.
    O livro "O físico" descreve como era a cirurgia antes da descoberta da anestesia. Amputação de uma perna. A pessoa amarrada. A navalha cortando a carne. Os gritos. As contorções do corpo. O sangue jorrando. Depois a serra e a costura da carne. Para terminar, o cautério com azeite fervente ou ferro incandescente.
    A dor é o que existe de mais terrível na condição humana. Muito cedo nós a experimentamos. O nenezinho chora e se contorce com suas cólicas. Delas não tenho memória. Mas me lembro das cólicas do meu primeiro filho, que chorou por seis meses, sendo que todos os chás, remédios e benzeções foram inúteis. A única coisa que aliviava era pegá-lo no braço e colocá-lo de barriga para baixo. Todo pai gostaria que os deuses fossem caridosos e transferissem para ele a dor do filho. Doeria menos sentir a dor do filho que vê-lo sentindo dor sem nada poder fazer.


    Meu filho Sérgio, o que sofreu cólicas por seis meses, é médico e se especializou em anestesia. É possível que Freud explique. Nossos impulsos vocacionais têm raízes em lugares obscuros da alma. O que não acontece com as escolhas profissionais, que nascem de considerações racionais sobre o mercado de trabalho. É possível que sua vocação de anestesista tenha nascido de suas experiências esquecidas de sofrimento. Aí ele sentiu que seu destino era lutar contra a dor.
    A anestesia é uma especialidade modesta. É o cirurgião que executa o grande ato! É ele que é o herói! É o seu nome que é lembrado. É o cirugião que ganha mais. E, no entanto, enquanto o cirurgião está com sua atenção concentrada no lugar preciso do corpo, que ele corta e costura, o anestesista está com sua atenção concentrada na vida adormecida. Ele vigia os seus processos vitais. Ele cuida para que a vida não vacile enquanto o corpo é cortado.
    Há também as dores da alma que nenhuma cirurgia consegue curar. O medo, por expemplo, não pode ser amputado. Pena. Porque o medo paralisa a vida. Dominada pelo medo, a vida se encolhe, perde a capacidade de lutar, entrega-se à morte. Animais amedrontados se deixam matar sem um único gesto de defesa. E, pelo que sei, as pessoas têm muito medo da anestesia, medo que chega a beirar o pânico, mais medo da anestesia que da violência do ato cirúrgico. É que elas têm medo de dormir. Quem dorme está indefeso, à mercê. Quem está dormindo volta a ser criança. As crianças têm medo de dormir. Por isso elas choram, não querem dormir sozinhas, desejam alguém ao seu lado. Alguém que cuide delas enquanto elas dormem. As canções de ninar são para tirar o medo a fim de que o sono seja tranquilo.
    A anestesia pode ser feita de duas formas. A primeira é a anestesia como ato técnico, científico, competente, ato que se executa sobre o corpo da pessoa que vai ser operada. A segunda é igual à primeira, acrescida de um cuidado maternal. O anestesista assume, então, a função do pai e da mãe que cantam canções para espantar o medo. Foi o Sérgio que me contou.
    Conversamos muito sobre o que fazemos. E como ele se orgulha do que faz, ele me conta. Contou-me sobre as visitas aos pacientes amedrontados, às vésperas da cirurgia. O objetivo dessa visista é técnico: checar o estado físico do paciente: pressão, coração, vias respiratórias, etc. Mas a pesssoa que está ali é mais que um corpo. É um ser humano. Está com medo. Medo da dor. Medo da morte, pois nunca se pode ter certeza. É preciso espantar o medo para que a vida não se encolha. mas o medo só sai quando se confia. Não é qualquer pessoa que tira o medo de dormir da criança. Há de ser alguém em quem ela confia. Essa pessoa, e somente ela, tem o poder de cantar uma canção de ninar. O anestesista se transforma então em mãe e pai: pega no colo a criança amedrontada - diante da cirurgia todos nós somos crianças!

Crônica: O Anestesista
Autor: Rubem Alves
Livro: O Amor que Acende a Lua

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Cinema e Medicina [4]: sobre o filme Até o Último Homem

    O filme Até o Último Homem é mais um dos que fariam parte de uma lista de filmes obrigatórios a serem assistidos por acadêmicos de medicina. Dirigido por Mel Gibson e lançado no Brasil em 2017, fez muito sucesso com o público em geral. 
   Baseado em uma história real, a obra leva aos cinemas a biografia do Cabo Desmond Doss, um paramédico do exército americano que durante a Segunda Guerra Mundial se recusa a portar armas, o que causa estranheza e incompreensão por parte de seus pares e superiores, levando-o a sofrer perseguições e até mesmo ser punido com prisão.

  
    
    A obra inicia apresentando a infância do protagonista. Apesar de ter crescido em um lar problemático, a fé cristã foi alicerce e guia para que ele seguisse pelo caminho do bem. Antes de entrar para as Forças Armadas Americanas, Desmond tinha o sonho de ser médico, contudo, devido dificuldades, não conseguiu realizar seu sonho.
    Seu período de treinamento foi bastante desafiador, tendo em vista que causou (e causaria) estranheza em qualquer militar o fato de alguém ter interesse em ir para a guerra sem portar uma única arma ou ser treinado para usá-la. Desmond Doss foi perseguido por seus superiores e por seus pares, tendo sido espancado e até mesmo preso, sendo apenas absolvido após o tribunal competente para julgá-lo ter recebido uma "carta" feita por um General ratificando os direitos dos militares à objeção de consciência religiosa.
   Após a devida autorização para ir à guerra sem armas e prestando serviço como paramédico, ele embarca em direção à Europa para integrar as Forças Americanas na Segunda Guerra Mundial.
    No campo de batalha o paramédico Doss demonstra uma coragem fora do normal, avançando junto à linha de frente, infiltrando-se sozinho em território inimigo e salvando vidas desde o primeiro confronto direto.
     O momento mais emocionante do filme é quando, após derrota em uma batalha direta, Desmond sozinho no campo de batalha começa a salvar os feridos que estavam abandonados. Fazendo uso de torniquete, realizando preenchimento de feridas, aplicando morfina e removendo os pacientes até a zona segura, o paramédico ali demonstrou ser virtuoso. Mesmo sob ataque, com uma inabalável, a esperança, a generosidade até mesmo com os que o agrediram durante o treinamento, a fidelidade, a lealdade e a perseverança brilharam como jóias. Havia algo de sobrenatural naquele homem, habitava nele o espírito do Ágape¹
    Já assistiu ao filme? Se sim, deixe nos comentários a sua impressão. 


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¹Ágape: Amor incondicional, baseado em comportamentos e pela escolha, sem esperar nada em troca.