A anestesia foi a primeira de todas as
especialidades médicas. São as Escrituras Sagradas que o afirmam. Pois Deus,
para retirar de Adão a costela necessária para a criação de Eva, fez cair sobre
o homem um sono profundo. Isso, fazer dormir, é ato de anestesista. Foi só
então, depois de exercer as funções de anestesista, que Deus se transformou em
cirurgião.
Deus não queria que o homem sentisse dor. Uma cirurgia feita
sem anestesia é uma experiência de uma brutalidade indescritível. Muitos
prefeririam morrer a sofrer os horrores da dor de uma cirurgia sem anestesia.
O livro "O físico" descreve como era a cirurgia
antes da descoberta da anestesia. Amputação de uma perna. A pessoa amarrada. A
navalha cortando a carne. Os gritos. As contorções do corpo. O sangue jorrando.
Depois a serra e a costura da carne. Para terminar, o cautério com azeite
fervente ou ferro incandescente.
A dor é o que existe de mais terrível na condição
humana. Muito cedo nós a experimentamos. O nenezinho chora e se contorce com
suas cólicas. Delas não tenho memória. Mas me lembro das cólicas do meu
primeiro filho, que chorou por seis meses, sendo que todos os chás, remédios e
benzeções foram inúteis. A única coisa que aliviava era pegá-lo no braço e
colocá-lo de barriga para baixo. Todo pai gostaria que os deuses fossem
caridosos e transferissem para ele a dor do filho. Doeria menos sentir a dor do
filho que vê-lo sentindo dor sem nada poder fazer.
Meu filho Sérgio, o que sofreu cólicas por seis
meses, é médico e se especializou em anestesia. É possível que Freud explique.
Nossos impulsos vocacionais têm raízes em lugares obscuros da alma. O que não
acontece com as escolhas profissionais, que nascem de considerações racionais
sobre o mercado de trabalho. É possível que sua vocação de anestesista tenha
nascido de suas experiências esquecidas de sofrimento. Aí ele sentiu que seu
destino era lutar contra a dor.
A anestesia é uma especialidade modesta. É o
cirurgião que executa o grande ato! É ele que é o herói! É o seu nome que é
lembrado. É o cirugião que ganha mais. E, no entanto, enquanto o cirurgião está
com sua atenção concentrada no lugar preciso do corpo, que ele corta e costura,
o anestesista está com sua atenção concentrada na vida adormecida. Ele vigia os
seus processos vitais. Ele cuida para que a vida não vacile enquanto o corpo é
cortado.
Há também as dores da alma que nenhuma cirurgia
consegue curar. O medo, por expemplo, não pode ser amputado. Pena. Porque o
medo paralisa a vida. Dominada pelo medo, a vida se encolhe, perde a capacidade
de lutar, entrega-se à morte. Animais amedrontados se deixam matar sem um único
gesto de defesa. E, pelo que sei, as pessoas têm muito medo da anestesia, medo
que chega a beirar o pânico, mais medo da anestesia que da violência do ato
cirúrgico. É que elas têm medo de dormir. Quem dorme está indefeso, à mercê.
Quem está dormindo volta a ser criança. As crianças têm medo de dormir. Por
isso elas choram, não querem dormir sozinhas, desejam alguém ao seu lado.
Alguém que cuide delas enquanto elas dormem. As canções de ninar são para tirar
o medo a fim de que o sono seja tranquilo.
A anestesia pode ser feita de duas formas. A primeira
é a anestesia como ato técnico, científico, competente, ato que se executa
sobre o corpo da pessoa que vai ser operada. A segunda é igual à primeira,
acrescida de um cuidado maternal. O anestesista assume, então, a função do pai
e da mãe que cantam canções para espantar o medo. Foi o Sérgio que me contou.
Conversamos muito sobre o que fazemos. E como ele se
orgulha do que faz, ele me conta. Contou-me sobre as visitas aos pacientes
amedrontados, às vésperas da cirurgia. O objetivo dessa visista é técnico:
checar o estado físico do paciente: pressão, coração, vias respiratórias, etc.
Mas a pesssoa que está ali é mais que um corpo. É um ser humano. Está com medo.
Medo da dor. Medo da morte, pois nunca se pode ter certeza. É preciso espantar
o medo para que a vida não se encolha. mas o medo só sai quando se confia. Não
é qualquer pessoa que tira o medo de dormir da criança. Há de ser alguém em
quem ela confia. Essa pessoa, e somente ela, tem o poder de cantar uma canção
de ninar. O anestesista se transforma então em mãe e pai: pega no colo a
criança amedrontada - diante da cirurgia todos nós somos crianças!
Crônica: O Anestesista
Autor: Rubem Alves
Livro: O Amor que Acende a Lua
Lindo!
ResponderExcluirQuanta coisa interessante no texto! 👏
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